AFINCA • 27 de setembro de 2013
Aquisição de bens e serviços sem licitação. Contratos que podem ser prorrogados indefinidamente. Fim da seleção pública para contratação de pessoal de pesquisa técnica e científica na área de C&T e transferências de recursos públicos do governo para a iniciativa privada, sem contrapartida, a título de “investimento”.
Parece brincadeira de país sem arremedo de constituição? Mas é o que propõe a PEC 290/2013 e sua futura lei regulamentadora, já redigida na forma do Projeto de Lei 2.177, de 2011, com o singelo nome de “Código de Ciência, Tecnologia e Inovação”.
O suposto “código” pretende regulamentar, em termos lesivos, à União, estados e municípios os artigos 218 e 219 da Constituição Federal. O primeiro refere-se ao incentivo do Poder Executivo ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológica; o segundo prevê a participação do mercado nesse processo. Essas regulamentações estão sendo construídas há meses no Congresso Nacional à revelia do conhecimento da opinião pública porque privilegia pouquíssimos agentes públicos e privados. Mais uma vez, porém, a Carreira de C&T sofre ataques. Vamos entender o que está ocorrendo.
O nascimento de um desfalque
Este ano, a deputada federal pelo PT, Margarida Salomão apresentou proposta de emenda constitucional que altera e adiciona dispositivos para “atualizar o tratamento das atividades de ciência, tecnologia e inovação”. O artigo 218 da CF ganharia mais um parágrafo, o 6º, com a seguinte redação:
“§ 6º Para a execução das atividades de que trata este artigo serão adotados mecanismos especiais ou simplificados de contratação de bens e serviços, de controle e tributação, na forma da lei”.
Por sua vez, o artigo 219 receberia o seguinte texto:
“Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento de empresas inovadoras, a constituição e a manutenção de polos tecnológicos e a criação, absorção e transferência de tecnologia.”
E algo mais grave para os servidores públicos é previsto em um proposto artigo 219-A:
Para a execução das atividades previstas neste capítulo, a União, os Estados e Municípios poderão efetuar a cessão temporária de recursos humanos, sem prejuízo dos direitos do servidor, de equipamentos e de instalações a entes públicos e privados, na forma da lei.
E aí o projeto de Lei 2. 177, de 2011, aprofunda o tamanho do descalabro. Aos exemplos retirados diretamente do texto do projeto de lei:
O artigo 57 considera “servidor público” aquele que exerce, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração, cargo função ou emprego público. E seu parágrafo primeiro acrescenta: “Equipara-se a servidor público, para os fins desta Lei, quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, assim consideradas, além das fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público.
Por partes. Primeiro, o projeto desconsiderada a figura do agente público (este sim, pessoa física que exerce, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração, cargo função ou emprego público), amplamente reconhecido pela doutrina do direito administrativo justamente para diferenciá-lo do servidor público concursado e/ou detentor de cargo em comissão. É essa uma das ideias de sem prejuízo dos direitos do servidor? Segundo: entidades paraestatais são entes privados que não integram a administração direta ou indireta, mas que exercem atividades de interesse público sem finalidade lucrativa. Integram o chamado 3º setor. Fundações, por exemplo.
Sem prejuízos de seus direitos? Caso servidores públicos cometam “crimes” previstos no projeto de lei, “ainda que simplesmente tentados”, como informa o artigo 56, estarão sujeitos, além das sanções penais, a perda de cargo, emprego, função ou mandato eletivo”. Sem prejuízos de seus direitos?
E a Carreira de C&T?
O projeto também prevê a criação das entidades de ciência, tecnologia e Inovação (ECTIs), organismos público ou privado, com ou sem fins lucrativos, voltados para a pesquisa tecnológica e científica. O Estado supriria essas entidades a título de “investimento”, sem licitação com contratos sem data definida para encerrar. O projeto de lei ignora a existência da Lei 8666, a Lei das Licitações. Isso garantiria, sugere a PEC de Salomão, agilidade ao processo de inovação. Quando não for possível que os recursos para os projetos inovadores sejam pagos por meio das ECTIs, o dinheiro seria destinado diretamente a pesquisadores.
Se forem servidores públicos, tais pesquisadores, previamente selecionados, poderiam pedir licença, constituir empresa e trabalhar para seus órgãos de origem, o que até hoje é proibido pelo inciso X do artigo 117 da Lei 8. 112, a lei do servidor público, justamente para coibir abusos (é vedado ao servidor “participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;(Redação dada pela Lei nº 11.784, de 2008)”)
A concessão de recursos de União, estados e municípios não necessitariam de registro no Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (Siconv). O art. 26 do projeto de lei diz que os entes públicos teriam participação societária minoritária nas ECTIs. Ou seja, cederiam servidores públicos para trabalhar para iniciativa privada, financiariam empresas e ficariam com a conta. Tudo a título de “investimento”.
A AFINCA já se colocou em Brasília, na audiência pública que debateu a PEC contra a emenda e o “código”. A data para a previsão de votação da PEC em plenário é dia 5 de novembro. Em seguida vem o PL 2177. Sabe-se que esse é o primeiro marco regulatório para pesquisa e inovação. Outros virão, fatiando e fragilizando o orçamento e serviço públicos, em especial a Carreira de C&T. Servidores, oposição e quem pleiteia concurso público ficarão de braços cruzados?